No dia em que escrevo esse texto, completa-se um ano desde a partida de minha mãe. Alda de Matos, mineira, nascida e criada na roça, em algum recôndito canto no cerrado de Curvelo. Filha única, brincava com os bichos, pescava o almoço no rio das Velhas, colhia buritis. Cresceu em uma realidade que beirava a ficção para mim, criança de cidade grande, ouvindo suas histórias de um mundo que por muito tempo eu só conheci no meu imaginário, suscitado por suas narrativas.
E depois, já adolescente, quando li pela primeira vez Sagarana, de Guimarães Rosa. Ali entendi de onde vinham as expressões tão surpreendentes que ela tirava do nada, do tudo de onde veio, dos matos, dos sertões, das veredas, da gente simples que vive da terra em sintonia com os ciclos e o tempo da natureza. Afinal, “no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! *”.
Tinha nos seus gestos a elegância dos pássaros, nas suas ações a coragem que a vida quer da gente e o senso estético nascido da botânica. Mesmo depois de muitas décadas longe de sua terra natal, morando nas capitais, ela personificava e legitimava a famosa frase do romance: “o sertão está em toda parte, o sertão é dentro da gente*”. Minha mãe também fez o sertão brotar em mim com suas histórias e seu exemplo. Não é à toa que acabei vindo morar em Minas Gerais, buscando essas raízes profundas.
Ainda que o universo inspiração de Guimarães Rosa já tenha sido tão alterado, seus rios poluídos, veredas secas, pássaros ameaçados, manter essas lembranças vivas alimenta não só meu imaginário de criança, ou uma nostalgia de outros tempos e mundos, mas sobretudo o desejo de honrar esse ambiente, a existência de minha mãe e de tantas pessoas que são fruto e parte dessa terra.
Sempre me perguntei porque não tinha o sobrenome dela, de Matos. Mas hoje nem sinto que é preciso tê-lo no nome, já está em mim. Eu de Matos, assim como todos nós somos do mato, como o pato e o leão, parafraseando outro grande artista brasileiro, e assim como todos nós somos da terra, das águas e do ar.
* Frase extraída do Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa.
Gisele Kimura / Membro do conselho deliberativo da Promutuca./ www.promutuca.com.br • adm.promutuca@gmail.com
Comments (9)
Exemplar essa visão tão privilegiada de Gisele Kimura. Ao chamar Guimarães Rosa chama os Sertões e as Veredas, caminhos de Rosa! Um
Mundo real que nos planta nas Minas Gerais ! Siga assim, amiga querida, vejo as luzes do arco íris te envolvendo !
Obrigada pelas palavras generosas, amiga querida!
Ela de Matos é alguém muito especial. Ela de Matos sabe cativar a todos, Ela de Matos mora no coração de muita gente. Ela de Matos tem brilho, paixão, fé e faca amolada! Lindo texto!
Fiquei emocionada com suas palavras, Paulo. Você me ajudou muito a entender e vivenciar os matos e águas dessa terra. Obrigada!
Texto lindo, Gisele! Tem a exata dimensão do significado de mãe, em todos os sentimentos que vc expressa: carinho, admiração, respeito, amor e saudade! Que maravilha vc ser merecedora dessa história!
Muito obrigada Iude! Fiquei feliz que tenha lido e gostado do texto, é uma forma de trazer mamãe de volta à nossa convivência, quase uma prosa. Você ia gostar de tomar um café com ela. Um abraço !
Profundo!!!! Autêntico, inspirador, cutucador. Obrigado, prima Gisele de Matos.
Obrigada a você, Raul, que sempre dá exemplo e nos inspira a expressar nosso amor e gratidão pelas pessoas queridas.
Lindo Gisele! Me emocionei com seu texto e acredito que sua maezinha também, de onde ela está! Um abraço!!